[Os bêbedos de Ordos]
O queixo do estrangeiro é quase tão longo e perfeito como o do imperador Zhu Yuanzhang. Só pode ser sinal de bom agouro porque Zhu morreu feliz e a história sabe dele. O estrangeiro é alto, danado.
Quando chegou o dia, pôs de lado aquele mesmo fato de sempre, escuro, bem engomado e comprado na melhor casa de fraques na terra natal. A gravata listrada, cem por cento seda italiana, fazia pandã com a camisa azul-cobalto. A mala de viagem, de couro e formato rectangular, estava pronta.
Ordos andava entediada com mais um daqueles dias quentes de Julho. A cidade, no sul da Mongólia Interior, tem quase tudo. O rio Amarelo a norte, o deserto de Ordos a sul. É uma cidade composta, com bairros residenciais, jardins, universidades, escolas e hospitais.
Mas Ordos também não tem nada, ou melhor, não tem ninguém. É a inevitável certeza de que o tempo, tão lento, não perde o tempo senão a matar o tempo.
Hoje, estéril e praticamente desabitada, é aqui que se encontra o mais moderno distrito fantasma do país.
Ao estrangeiro competia-lhe mudar o destino desta metrópole de biografia tão curta. Papel ingrato, é verdade, ainda mais por uma recompensa imerecida – três mil renminbis – prometidos ao telefone por um agente a quem o estrangeiro não se lembrava de ter dado o número. Não fazia sentido puxar pela memória, o estrangeiro dá o número de telefone a toda a gente, faz parte de uma loucura que insiste em não reprimir.
As ordens eram claras. Teria de estar presente na inauguração de uma nova agência imobiliária. Nesse dia, o nosso estrangeiro seria um especialista de vinhos, acabadinho de chegar da Europa para explicar àquela gente a fineza do vinho.
Empresários mongóis, das negociatas das minas, estariam ali, ávidos de novos investimentos. Ordos precisava deles. Ordos precisava de quem olhasse para ela.
O estrangeiro saiu de Pequim numa manhã de quarta-feira. Fez treze horas de estrada na companhia de umas meninas louras, de altura russa e ar desconfiado. Também seguia um trio masculino de pele morena, que o nosso estrangeiro reconheceu, de imediato, das noites do Salsa Caribe, um bar de Pequim.
Ordos continuava muda e indiferente. À frente do mausoléu de Genghis Khan, o estrangeiro voltou a sentir aquele tique do sobrolho direito. Encarar a estátua do grande herói conquistador, ainda por cima a cavalo e a quantos metros do chão, deixava-o nervoso. Especialista de vinhos? Que pensaria Khan de tudo isto? Tanto esforço na conquista de um império, que agora estava prestes a ser reconquistado por um estrangeiro engravatado. Ainda por cima europeu, fluente no mandarim e com ligações à capital.
Nesses momentos, pensava no fraque. Sim, o fraque dava-lhe segurança nestas coisas do aparecer. Afinal de contas, quem é que ali percebia de vinhos? Nem o próprio. E por isso passou a noite a vasculhar a Wikipedia.
Ordos amanheceu com luz e uma fina camada de poeira no ar. Enquanto mais um dia se arrastava a desgosto, no salão do hotel o nosso estrangeiro abriu a festa.
Subiu ao palco, ergueu os braços até ao nível da cabeça, levantou orgulhosamente o queixo pontiagudo e relembrou algumas frases da internet: “As evidências arqueológicas sugerem que a mais antiga produção de vinho teve lugar em vários locais da Geórgia, Irão e China entre 6000 e 5000 a.C.”.
As maçãs do rosto do agente agitavam-se, rosadas, suadas de orgulho. O Ocidente estava ali, em Ordos. O trio moreno dava música. As meninas louras passeavam de bandeja e brindavam ao negócio com taças cheias.
O salão acabou por se render ao poder inebriante (e confuso) do Château Margaux de Bordéus. Ao deserto de Ordos começaram a chegar as tropas de Genghis Khan. Do chão brotavam gordos cachos de uvas. Os tropas, de pele morena, assobiavam sons cubanos enquanto libertavam os cavalos de batalha dos arreios pesados. Lá ao fundo, num lagar improvisado, as meninas louras, ainda de avental, levantavam a saia e pisavam a uva. Genghis Khan ajoelhou-se à frente do mausoléu do nosso estrangeiro e agradeceu a boa colheita desse ano.
Posted on November 13, 2012
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