Graças a Deuses uma viagem
Xiahe, província de Gansu, dez da manhã, num lugar ao sol, o sol hoje não perde para o vento, e é onde o autocarro pára, e sobem dois polícias, passaportes por favor, podem acompanhar-me, e descemos as duas, e estamos a quase três mil metros acima do nível do mar, e o posto da polícia é um valhacouto quase inutilizado, assente em hectares de terra mal cultivada, próxima do sol, e dourada pelo sol, e o sol também faz rosetas nas caras, e o polícia mais baixo é quem fala, trabalha em Pequim, trabalho, olha o meu passaporte, outra vez, depois telefona, e do outro lado uma voz masculina, mas ela é jornalista, sim, tem um visto de jornalista de dois mil e nove, sim, agora tem um visto de trabalho emitido em Pequim, sim, somos turistas, em desespero peço ajuda a um deus qualquer, estou a um passo de Xiahe.
Há três dias em Pingyao, província de Shanxi, quatro da tarde, numa cidade murada, entre muros Ming, e um nico de sol, e uma conversa num jardim que já foi escola e que hoje é de três mulheres mais um cuco, achamos que é um cuco, e uma delas pega na minha mão, e as minhas mãos veja bem, sim, vejo, entroncadas, dez galhos duros, viúvos, é que os nossos homens estão lá em cima, e aponta para o céu, e eu despeço-me, e depois numa igreja, e os bancos vazios, e os bancos quebrados, mas alguém que não se esquece desta igreja, nem da quaresma, nem de cobrir os santos a panos negros, eu despeço-me outra vez, e as mulheres de Pingyao ficam para trás, e o jardim que já foi escola, e a igreja, e a cidade-murada-mais-bem-preservada-da-China.
Um dia depois a caminho de Lanzhou, oito da noite, dezanove horas de comboio, cabine número sete, e quatro camas, e casas de banho que juro para nunca mais, sabe onde posso carregar o meu telemóvel, as tomadas não funcionam, menina, veja o comboio, não vê que já não presta, vejo, e não desisto, na China nunca se desiste, compro um carregador portátil à menina de cesto, que anda noite dentro, e comboio dentro, e que vai e que vem, e fico ligada ao mundo, e o mundo a mim, e volto à casa de banho que jurei nunca mais, não devia jurar coisas, e a menina da cama número um maquilha-se e sai em Xi`an na província de Shaanxi, e a menina da cama número três maquilha-se e sai em Tianshui na província de Gansu, e eu sigo no comboio Mao, eu e o filho de mil homens do Valter Hugo Mãe, e chegar ao fim desta linha parece-me um milagre, na China os milagres estão sempre a acontecer.
Lanzhou, província de Gansu, oito da noite, extingue-se o dia, mas não o canto do muezim, e nós à janela de um hotel barato, e eles caminham para a última oração, regressaremos mais tarde a Lanzhou e à mesquita, agora tomo um banho que demora.
A caminho de Xiahe, sete e meia da manhã, casas só tijolo, e também os homens dessas casas, de pele escura, de barretes brancos a croché, e colares de contas, mais mil minaretes e luas crescentes, e amendoeiras em flor, e mais lixo e ferro-velho à beira da estrada, depois a pele muda de cor e as ruas também mudam de cor, e os caminhos de língua, no meio do nada dois monges sobem para o autocarro, da janela uma estupa budista.
Xiahe, dez e um quarto da manhã, e penso nos dois monges, e em todos os que estão à espera no autocarro, o seu número de telefone, aqui senhor polícia, e devolve-me o passaporte, e entramos em Xiahe, e deixo a mala na pousada da juventude, e o passaporte também para novo registo na polícia, mas finalmente no Mosteiro de Labrang, um dos mais importantes templos tibetanos fora do Tibete, muros de terra batida, mil monges, mil mantos rosa, e monges que andam de táxi, e que falam ao telemóvel, e que aquecem o almoço sobre um painel solar, e mulheres com as rosetas que o sol fez, que o frio fez, e de tranças difíceis, e de roupas pesadas, e sem esquecer de sorrir vivem o tempo nos templos, depois um pátio só para mim, e outro pátio só para mim, quase ninguém para falar em mandarim, quase ninguém para falar inglês, só dois franceses atentos à carrinha antimotim, e às memórias, e às imolações, e eu sigo pelo Instituto de Medicina Tibetana, pela sala de orações, pelas velas de manteiga de iaque, e o monge-guia ri muito alto porque aos vinte e três anos chegou à terceira idade, e então diz que sabe que sou jornalista, e então fala da história que quer.
Posted on April 17, 2013
0