de cuandixia, china

Posted on October 15, 2013

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[os pátios dos han] Em Cuandixia, os Han viram tudo a acontecer, a queda dos Ming, dos Qing, a subida dos republicanos, dos comunistas e de uma nova geração de políticos chineses. Os Han eram uma família guerreira, não recusavam uma batalha, e em tempos de paz não recusavam a terra. Hoje, com pouco menos de cem habitantes, Cuandixia tem ainda setenta membros do clã Han. Nos subúrbios de Pequim, esta pequena vila não tem crianças, não tem escolas, nem hospitais, mas multidões de turistas que visitam em fila indiana mais de quinhentos anos de história.

Han Mengqi não acredita que os tempos de glória sejam tempos idos, nem que a vida esteja pior, nem que seja uma maçada. Han tem 62 anos, gosta da vida e gosta de olhar para ela do pátio interior, quadrangular e perfeito como já era há duzentos anos. Construído durante a dinastia Qing, este pátio abre-se ao céu e fecha-se ao mundo – porque as coisas boas são para manter cá dentro, as más lá fora. A casa de Han e da mulher, Wang Jiuyun, chama-se Pátio dos Lordes, está no alto da colina e faz juz ao nome e às regras do feng shui e da antiguidade. Durante a dinastia Qing, as casas do povo estavam na parte baixa da vila e as que estavam mais ao alto pertenciam aos ricos, explica Han.
Os dias são passados entre pequenas tarefas; os campos dão a abóbora e o feijão, a árvore da castidade dá o mel. O meu homem faz este mel há mais de trinta anos e é bom para a tensão pré-menstrual, tosse e ansiedade, grita a mulher. Wang não gosta de conversas com jornalistas, e volta a gritar lá do fundo que os chineses são gente de bem. Aqui em casa só Han gosta de falar, e só Han gosta de sorrir, e de desfilar para a câmara com o casaco azul, botões dourados, estilo Sun Yat-sen, que mais ninguém veste, só ele.
Para além deste casaco, poucas são as memórias da China republicana. Já não é a agricultura nem a venda de cabras que traz a comida para a mesa. Agora vivemos do turismo, recebemos em casa 700 hóspedes por ano, preparamos a comida e o negócio é muito bom, explica Han que cobra 200 renminbis por uma noite em época alta. Os quartos do Pátio dos Lordes têm pouco de novo; uma televisão “Panda”, o tecto forrado a folhas de jornal e lençóis quase infantis. As janelas de madeira, revestidas a papel de arroz, e os ‘kang’, cama antiga de pedra aquecida através do fogo, estão lá há dois séculos.
Han está preparado para a noite que é fria, e alimenta o ‘kang’ a lenha e jornal. Lá fora, uma chaminé cospe o fumo, é um sistema que também tem duzentos anos, diga-me se o homem não era mais inteligente do que hoje, pergunta Han. Depois vai dormir.

O clã Han

Foram os antepassados de Han que fundaram Cuandixia há mais de quinhentos anos. Dos 97 habitantes, 70 são descendentes de Han Shining, um oficial militar da dinastia Ming. Guerreira e sem medos, a família Han serviu o exército durante gerações e, em tempos de paz, serviu-se do campo. Cuandixia foi um importante posto comercial e uma antiga rota postal e militar que ligava Pequim a lugares remotos e a cidades onde hoje se localizam a província de Hebei e a região autónoma da Mongólia Interior.
Mercadores paravam para descansar, lavar e alimentar os cavalos. Já nessa altura, estes camponeses tinham a cultura da hospedagem, começa por explicar Li Chaoqiang, funcionário do governo local.
Na década de 50 do século passado, logo após a subida de Mao Zedong ao poder, foi construída a auto-estrada 109, que actualmente liga Pequim a Lassa, no Tibete. A via deu novo fôlego ao sistema de transporte na região, mas deixou Cuandixia quase a morrer à fome. Os Han voltaram ao campo e à agricultura de montanha. Hoje acredita-se que tenha sido este período de escassez a fazer com que as 656 casas e os 76 pátios interiores tenham sido preservados. As pessoas não tinham dinheiro para sair de Cuandixia e, ao ficar aqui, acabaram por cuidar do património, sublinha Li Chaoqiang.

Em fila indiana

O próximo autocarro para Pinguoyuan, em Pequim, parte às nove e meia da manhã, avisam altifalantes pendurados nas paredes das ruelas de Cuandixia. É favor de se dirigirem com antecedência à entrada, continua a voz de menina. E turistas abandonam o Pátio dos Lordes, e outros chegam, e tentam entrar num dos quartos, forçam a porta, e forçam a tranca grossa de madeira, até que Han Mengqi avisa, ainda está alguém lá dentro a dormir. E as pessoas perguntam quem lá está, porque querem ver os quartos, e perguntam sobre o pátio, e sobre a sala e o serviço de chá, e sobre o mel, e sobre a vida de Han Mengqi e de Wang Jiuyun. E sobra sempre qualquer coisa para dizer, porque Han continua a falar, e as pessoas continuam a perguntar.
Antes os chineses só queriam visitar cidades grandes e edifícios modernos, agora começam a gostar de espaços e coisas mais antigas, chama a atenção o senhor Gao, que está de visita com a família.
Gao cresceu numa outra aldeia do distrito de Mentougou e já conhecia Cuandixia. Há quinze anos isto não era assim, os japoneses deixaram muitas casas [228] em ruínas, que só agora foram reconstruídas, explica o reformado de sessenta anos. Gao acaba por se misturar com os hóspedes da casa de Han, que se misturam com turistas como Gao. Uns de pijama, outros de máquina fotográfica.
Foi em 1995 que tudo mudou, primeiro vieram os fotógrafos, depois os pintores, que chamaram os homens do cinema, os jornalistas, e por fim os turistas. Cuandixia tornou-se num destino obrigatório na rota turística chinesa. O bilhete de entrada na vila custa 35 renminbis, dinheiro que não vai para a população, mas directamente para os cofres do governo regional. Por ano, o sector do turismo em Cuandixia arrecada pelo menos 20 milhões de renminbis, explica o secretário local do governo chinês, Han Bo (primo de Han Mengqi). As pessoas aqui têm mais qualidade de vida, continua o secretário, não há poluição, comemos o que apanhamos nos campos, onde é que na grande cidade podemos viver assim?

Nem escolas nem hospitais

A grande cidade tem escola. Cuandixia tem as duas estantes do café de Bi Qing Chen com livros de cultura chinesa e pequenas operetas maoistas. Cuanduxia não tem escola, nem brincadeiras de rua ao fim da tarde, nem crianças de segunda à sexta, só aos sábados, quando regressam a casa.
Han Fei tem catorze anos e um bloco de páginas brancas. Quer ser pintora, ou designer, ou designer gráfica, ainda não decidiu. Mas tenho a certeza que no futuro não quero ficar aqui, diz a estudante, que frequenta durante a semana uma escola interna a duas horas de casa.
Mas o autocarro e as propinas são pagas pelo governo, explica o pai, Han Weigo. O que é que vale, se a qualidade da educação é má, responde a mulher, Sun Jianxin, que deixou há quinze anos o condado de Zhoulu, na Província de Hebei, para casar. O negócio até não é mau, fazemos entre setenta e oitenta mil renminbis por ano, mas isto não é vida para os meus filhos, quero que se dediquem aos estudos e encontrem um bom emprego na cidade.
Han Fei, a décima sexta geração dos Han, passa o sábado e o domingo em casa, com os pais e o irmão de oito meses – a política do filho único permite, em algumas zonas rurais, uma segunda criança aos casais que tiveram primeiro uma menina. Quando venho a casa só ajudo os meus pais, arranjo os quartos, faço as camas, ponho a mesa, levanto os pratos e limpo a casa. A vida de Han Fei em Cuandixia é só isto, e pouco mais, e quando se pergunta o que gosta de fazer nos tempos livros, responde que são os trabalhos de casa.
O futuro de Cuandixia não tem crianças, nem adolescentes. Os salários nas grandes cidades são uma aliciante, explica Han Bo, secretário do governo chinês, que acredita que esta seja a principal razão de uma migração forçada. Além disso, não temos cá hospitais, o nosso governo envia médicos para fazer exames gratuitos aos idosos e crianças, mas quando há emergências, as pessoas têm de ir pelos próprios meios até Mentougou, a duas horas de caminho.
Todos neste pátio sabem disso. A mãe de Han Fei não está preocupada com o futuro do negócio. Só com o futuro dos filhos

[publicado no jornal Ponto Final, Macau]

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