[U Soe Gyi, o taxista de mandalay, e alguma coisa de portugal]
último dia no myanmar com U Soe Gyi, 57 anos, birmanês, pescador na tailândia, agora taxista em mandalay. U Soe tem três filhos, dois sobrinhos criados como filhos, braços longos, capazes de consolar muitos mais, gente desconhecida até. é ele que me deixa em paz com a cidade. logo pela manhã ouve-se mandalay inteira do quarto 401 do hotel sahara. mercados, mosteiros, vendedores ambulantes, restaurantes chineses, locais, tascas de rua, escolas, carripanas que transportam trabalhadores, casais vestidos de igual no dia dos namorados, turistas. tudo cabe num só cruzamento que olho pela janela.
o táxi de U Soe Gyi leva-nos daqui. “cheira a peixe seco, os birmaneses e os chineses gostam de peixe seco”, vai dizer pelo caminho.
***
U Soe está perdido pela china. compram-se três motas chinesas pelo preço de uma japonesa, conta. e a china aparece em todo o lado: na construção, na restauração, no rosto birmanês, no filho cruzado, naquele que veste longyi – saia local para homem e mulher – mas nunca esquece o chinês, a língua dos antepassados, naquele que me oferece kai shui (água a ferver, em mandarim) quando digo que estou mal disposta. U Soe diz que em mandalay a velha china é pobre, a nova está a enriquecer, também com o negócio da heroína. quem consome, pergunto. são os mais novos, responde.
***
a avó de U Soe Gyi era de yunnan, china. fugiu por ser muçulmana, conta. daí para baixo toda a linha familiar é budista. birmanês é devoto a buda, é supersticioso, descalça-se ao entrar no pagode para fazer o caminho que o leva até deus. os sapatos são impuros, os estrangeiros também se descalçam quando visitam os templos. “diria que 98 por cento dos birmaneses são budistas”, explica U Soe, sem nunca tirar os olhos da estrada. o caminho até à ponte de madeira de teca mais longa do mundo (1,2km) faz-se em pouco menos de meia hora, é terra batida, sol que nasceu hoje mais forte, mil motas, mil pagodes, dourados, brancos, cor de terra, que na distância mais parecem peças de cerâmica. U Soe gostava de construir um pagode, porque quem tem dinheiro pode fazê-lo e quem o faz ganha o respeito dos outros.
***
primeiro fala de cristiano ronaldo. outras referências sobre portugal: “tenho um amigo português, tratamo-lo por Dodo, vive perto de mandalay, é cristão, mas não fala português”. U Soe fala então de uma comunidade pobre, de agricultores, cristã, que já não tem pele clara, mas morena, que já não fala português, mas birmanês, que vive em pequenas vilas fora de mandalay, em chan tha, em ye u, diz que é mais ou menos assim que se soletra. “só não mudou a forma dos olhos, a cor do cabelo, a religião”, acrescenta ainda sobre este grupo com sangue português. e cada vez que se lembra de uma nova informação, grita, levanta o indicador direito para explicar, sorri dessa pequena lembrança. os portugueses chegaram ao myanmar há mais de 400 anos, e Filipe de Brito lutou por aqui, foi rei de Pegu, roubou sinos aos templos para construir canhões, caiu em desgraça. “há por aqui uma igreja com padres portugueses”, lembra-se quando regressamos ao centro da cidade. peço a U Soe que nos leve até lá.
***
pequena nota: Filipe de Brito foi um comerciante e aventureiro português que andou pela região por volta dos anos 1600. os descendentes dos soldados portugueses, que faziam parte do pequeno exército que comandava (e de outros) são hoje conhecidos como os bayingyis.
***
a igreja do sagrado coração foi construída há mais de um século por missionários franceses. aqui está, no centro de mandalay, corpo azul-escuro, coruchéu azul celeste, perfeita neste quarteirão de outras cores claras. recebe-nos o padre John Soe Ting, também ele tem sangue português, pele morena. falamos em inglês. “os meus pais são de chan tha e nessa vila têm todos sangue português”, diz.
em mandalay e arredores, continua, onde se celebram este ano os 400 anos da chegada dos portugueses, vivem cerca de vinte mil católicos, a maioria são descendentes lusos. “esse exército de portugueses derrotado pelo rei da birmânia foi separado e enviando para várias vilas [desta região de mandalay], eram homens livres mas ficaram a servir o rei birmanês como soldados”
***
entretanto voltamos a deixar mandalay, seguimos para mingun pela ponte nova, construída há quinze anos pelos chineses, “este é o caminho que faz quem vai para a índia”, diz o nosso condutor. visitamos mais um pagode, tem 382 anos, outro, com mais de 200. “tantos mosteiros”, grita U Soe Gyi no caminho de regresso, como se os visse pela primeira vez. e fala como os filhos dos pescadores acabam por seguir a vida monástica, assim como os órfãos do tsunami, as pessoas de idade, sem família. e passamos pela vila wa ched, “wa” quer dizer bambu, “ched” é umbigo. e entretanto já o sol se pôs, já passámos o forte com o canhão que fez frente aos ingleses, falámos de Aung San Suu Kyi, “amada de todos os birmaneses”, contornámos manadas de vacas, o antigo lago. é hora de nos despedimos de mandalay, de U Soe Gyi, que hoje cabe igualmente nos meus braços finos, curtos.
Posted on February 14, 2017
0