ao contrário do que se passou nos últimos anos, de férias e viagens fartas, em 2020 estive apenas uma semana fora de macau. o pequeno território tinha registado há poucos dias o primeiro caso de covid-19 quando parti para portugal, e se é verdade que esta misteriosa doença já aparecia nos telejornais portugueses e em conversas de circunstância, também é certo que o novo coronavírus era entendido como mais um infortúnio da china longínqua do que propriamente uma ameaça mundial.
a primeira coisa que fazia quando acordava, por volta das seis da manhã, no meu quarto em lisboa, era ler as últimas notícias sobre o vírus. no dia 28 de janeiro, 4652 pessoas tinham sido infectadas (sete em macau), já se contabilizavam 106 mortos, 18 países e regiões afectados.
eu procurava não viver alarmada e pensar que em breve estaria de regresso a macau e a casa, onde os meus dias iriam inevitavelmente voltar a tomar a forma de sempre.
no dia antes de regressar a macau, peguei no carro, pus-me a conduzir na despedida de lisboa, do inverno, enquanto ouvia as notícias que chegavam da rádio e da china. a chuva libertava uma fragrância doce no ar, eu sentia-me num estado de sonolência e de nostalgia, como se adivinhasse que nada voltaria a ser como dantes. tentei concentrar-me nas pequenas tarefas a fazer antes de partir. nesse dia, na farmácia: ‘tem máscaras’, perguntou uma senhora ao meu lado, ‘estão esgotadas’, disse uma das funcionárias ao balcão, ‘desculpe, porque é que estão esgotadas’, interrompi, ‘são os chineses que aqui vêm e levam tudo’, respondeu-me.
cheguei a casa no dia 2 de fevereiro. as ligações marítimas entre o aeroporto internacional de hong kong e macau estavam suspensas e restava-me atravessar de autocarro a ponte do delta do rio das pérolas. a noite descia enquanto cruzava a maior travessia marítima do mundo, inaugurada há pouco mais de um ano como um dos mais importantes símbolos da integração regional, mas que ironicamente também em breve se fecharia para muitos de nós aqui em macau.
voltei a casa e voltei ao trabalho, já de máscara, e num dia-a-dia esmagado pelo coronavírus. a 4 de fevereiro, macau anunciou o encerramento dos 41 casinos do território, o motor da economia local. pela primeira vez desde que há memória, os casinos não abririam as portas durante um período tão longo (duas semanas).
depois dos casinos, fechou-se ao mundo a cidade, que é hoje vista como um verdadeiro exemplo na prevenção e combate desta doença. ao longo do ano, porém, as fronteiras foram abrindo e fechando consoante a situação da pandemia, embora para muitos trabalhadores não-residentes (pessoas que vivem e trabalham em macau, mas sem estatuto de residente) que estavam fora, a entrada continue interdita até hoje, numa das medidas mais cruéis tomadas durante a crise.
ora, nesta época de festa e de reunião familiar, tenho estado mais em contacto com alguns amigos, em portugal e noutros países, que enumeram ao telefone sacrifícios necessários para sobreviver a estes tempos estranhos e incertos. tenho assumido sobretudo um papel de ouvinte e, quando desligo o telefone, pergunto-me sempre se eu aqui em macau, onde vivo praticamente fechada, consigo entender a verdadeira dimensão desta pandemia.
quase um ano depois de ter regressado de lisboa, parece-me quase um acto de extremo egoísmo assumir que me sinto a asfixiar nesta espécie de paz podre em que vivemos. temos a sorte de nos mantermos protegidos da doença, mas para isso vivemos mergulhados numa profunda solidão.
para todos, um 2021 com saúde e liberdade.
Posted on December 31, 2020
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